Reportagem especial publicada no Jornal Amazônia, 21/11/2010
Texto: Cleide Magalhães Edição: Hamilton Braga
A condutor de veículo é a peça principal no trânsito, pois é ele quem está entre o volante e o banco e, ao pegar o carro, assume ainda o risco de determinar se vai matar ou morrer, ou seguir em frente, em paz e retornar para sua casa. Embora ele esteja sujeito a ter essa responsabilidade, muito brasileiros ainda mantém comportamento violento ao assumir o volante, o qual pode tornar-se uma arma e provocar acidentes gravíssimos e com vítimas fatais.
A violência no trânsito é hoje uma ameaça para 2/3 da população brasileira que anda a pé pelo País, onde há 1.200 novos carros por dia. No Pará, dados do Departamento de Trânsito do Pará (Detran/PA) mostram que a frota de veículos, até 19 de outubro deste ano, correspondia a 932.775 veículos, sendo 282.390 na capital. O órgão projeta que o crescimento da frota, entre os anos de 2003 e 2021, será em torno de 6 milhões de veículos registrados circulando no Pará, dos quais 1,6 milhão somente na RMB. "Hoje, ao mês, na RMB, a circulação oscila entre 2,8 e 3 mil novos veículos. São muitos carros que entram em circulação e poucos saem", afirma Carlos Valente, coordenador de Planejamento do Detran/PA.
O estudo "Morte no Trânsito: Tragédia Rodoviária", realizado pelo Programa de Seguranças nas Estradas (SOS Estradas), traz também revelações surpreendentes: todos os dias ocorrem pelo menos 723 acidentes nas rodovias pavimentadas brasileiras, provocando a morte de 35 pessoas por dia, e deixando 417 feridos, dos quais 30 morrem em decorrência do acidente.
Na avaliação do estudo, a melhoria das condições das rodovias não significa que há uma redução dos acidentes, pois 90% são provocados por falha humana. No Pará, dados da Polícia Rodoviária Federal (PRF) mostram que nas operações de Finados, entre 29 de outubro e 2 de novembro, e Proclamação da República, de 12 a 15 de novembro deste ano, nas oito estradas federais - que contam com seis mil quilômetros pavimentados ou não que cortam o Estado - ocorreram 113 acidentes, 54 feridos, 7 mortos, 2.096 autuações por infração de trânsito, 27 carteiras nacionais de habilitação foram apreendidas, 60 veículos retidos, 2.820 testes de alcoolemia realizados, 49 autuações por embriaguês no volante e 28 prisões por embriaguês no volante.
Dos 113 acidentes ocorridos nas rodovias federais, 66 ocorreram durante a Operação de Finados e 47 na Proclamação da República, a qual contou ainda com 7 mortes. Mesmo que haja decréscimo nos casos, o superintendente da PRF no Pará, Isnard Ferreira, mostra-se preocupado e comenta sobre a falta de responsabilidade dos condutores e a impunidade. "O número de policiais que colocamos na pista funcionou; o motorista consciente que também foi para a pista deu certo, mas quem não ajudou foi o mau condutor. O que mais nos preocupa não são os números, porque eles reduziram, mas a gravidade e violência desses acidentes. Quem diminui acidentes não é a polícia nem o órgão de trânsito, mas o condutor. Isso poderá melhorar quando for aplicada multa por radar acima do mínimo necessário e o encaminhamento da multa quando o veículo ultrapassar 200 km/h nas estradas - velocidade absurda, é como se o carro voasse, quase nem dá para imaginarmos", explica.
Embora o Código de Trânsito do Brasil, instituído na Lei 9.503, em 23 de setembro de 1997, seja um dos mais rigorosos e completos do mundo e preveja penalidade até para quem jogar lixo na rua, sua aplicabilidade ainda é frágil. Os acidentes causados nas estradas paraenses ocorreram por falta de atenção e, na maioria, por embriaguês ao volante. "As pessoas sabem que não podem dirigir alcoolizadas, mas se valem da não obrigatoriedade de se fazer o teste do bafômetro, o qual não podemos realizar nem mesmo quando elas estão visivelmente alcoolizadas. Então, essas pessoas continuam a beber, ferir e matar porque não acontece nada com elas, e logo, logo são liberadas. A impunidade faz com que esses problemas se arrastem e a mecânica do trânsito hoje volta para ela (impunidade). Quando pegávamos pesado na alcoolemia durante nossas operações, as pessoas tinham medo de ir às rodovias. Mas quantas pessoas temos conhecimento que provocaram acidente e foram presas, ou que apresentou alcoolemia e tiveram suas carteiras cassadas? A própria lei é flexível e não as alcança. A falta de aplicabilidade da lei a torna obsoleta", critica o superintendente da PRF.
A pessoa alcoolizada perde a noção de distância, espaço e da realidade, além do reflexo. Diante de uma situação de emergência, ela não consegue raciocinar a tempo de desviar e evitar acidentes. A PRF verifica que hoje os acidentes mais graves estão saindo da região metropolitana e indo para as estradas. O acidente de trânsito no acostamento é uma das situações mais graves, porque é por onde o pedestre e ciclista caminham e local em que o veículo está parado com problema mecânico.
Antropólogo afirma que impera o "sabe com que está falando?"
A Editora Rocco lançou recentemente o livro "Fé em Deus e pé na tábua - ou como e por que o trânsito enlouquece no Brasil", do antropólogo Roberto da Matta, com João Gualberto Moreira Vasconcelos e Ricardo Pandolfi. Na obra, o autor ressalta que o comportamento do brasileiro é terrível no trânsito, resultado da incapacidade de ser uma sociedade igualitária; de instituir a igualdade como um guia para a conduta.
Para ele, o trânsito reproduz valores de uma sociedade que quer ser republicana e moderna, mas ainda está atrelada a um passado aristocrático, em que alguns podiam mais do que muitos. Em casa, afirma o autor, as pessoas são ensinadas que são únicas, especiais. "Aprendemos que nossas vontades sempre podem ser atendidas. É o espaço do acolhimento, do tudo é possível por meio da mamãe. Daí a pessoa chega à rua e não consegue entender aquele espaço onde todos são juridicamente iguais". Ir para a rua, no Brasil, continua, "ainda é um ato dramático, porque significa abandonar a teia de laços sociais onde todos se conhecem e ir para um espaço onde ninguém é de ninguém". Ele destaca que o trânsito é o lado mais negativo desse mundo da rua, pois é doentio, desumano e vergonhoso notar que 40 mil pessoas morrem por ano no trânsito de um país que se acredita cordial, hospitaleiro e carnavalesco.
Roberto da Matta considera ainda que o brasileiro com um carro se sente superior ao pedestre. Ou superior a outro motorista porque tem um carro mais moderno ou mais caro. Para o antropólogo, o motorista não consegue entender que ele não é diferente do outro motorista ou do pedestre, que ele não tem um salvo-conduto para transgredir as leis. "No Brasil, obedecer à lei é visto como uma babaquice, um sintoma de inferioridade. Isso é herança de uma sociedade aristocrática e patrimonialista, em que não houve investimento sério no transporte coletivo e ainda impera o ‘Você sabe com quem está falando?’".
Para ler reportagem completa:
http://www.orm.com.br/amazoniajornal/interna/default.asp?modulo=831&codigo=501240
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